11 de ago. de 2011

História


O SÍTIO DO PICAPAU AMARELO

Numa casinha branca, lá no Sítio do Pica-pau Amarelo, mora uma velhinha de mais de sessenta anos. Chama-se Dona Benta.

Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:

--- Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto...

Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas – Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem.

Narizinho tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.

Na casa ainda existem duas pessoas – Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo.

Emilia foi feita por Tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa.

Apesar disso, Narizinho gosta muito dela; não almoça nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha entre dois pés de cadeira.

Além da boneca, o outro encanto da menina é o ribeirão que passa pelos fundos do pomar.

Suas águas muito apressadinhas e mexeriqueiras correm por entre as pedras negras de limo, que Lúcia chama as “Tias Nastácias do rio”.

Todas as tardes Lúcia tomam a boneca e vai passear a beira d’água, onde se senta na raiz de um velho ingazeiro para dar farelo de pão aos lambaris.

Não há peixe do rio que não a conheça; assim que ela aparece, todos acodem numa grande faminteza. Os mais miúdos chegam pertinho; o graúdo parece que desconfiam da boneca, pois ficam ressabiados, a espiar de longe. E nesse divertimento leva a menina horas, até que Tia Nastácia apareça no portão do pomar e grite na sua voz sossegada:

--- Narizinho, vovó está chamando!...

O jardim de Dona Benta fica nos fundos da sala de jantar, um verdadeiro amor de jardim, só de plantas antigas e fora de moda.

Flores do tempo de sua mocidade: esporinhas, damas-entre-verdes, suspiros, orelhas-de-macaco, dois pés de jasmim-do-cabo, e outro, muito velho, de jasmim-manga.

Plantado na calçada e a subir pela parede, o velhíssimo pé de flor-de-cera, planta que os modernos já não plantam porque custa muito a crescer.

Até cravo-de-defunto existe lá, flor com que Narizinho implica por ter “cheiro de cemitério”.

E o pomar?

O pomar fica nos fundos da casa, depois do “quintal da cozinha”, onde há um galinheiro, um tanque de lavar roupa e o puxado da lenha.

O poço velho fora fechado depois que Dona Benta mandou encanar a agüinha do morro.

Passado o quintal vem o pomar – aquela delícia de pomar!

Por que delícia?

Porque as árvores são muito velhas, e árvore quanto mais velha melhor para a beleza e a frescura da sombra.

Árvore nova pode ser muito boa para dar frutas bonitas, baixinhas e fáceis de apanhar. Mas para a beleza não há como uma árvore bem velha, bem craquenta, com os galhos revestidos de musgos, liquens e parasitos.

É tão antigo aquele pomar que os vizinhos até caçoam. Vivem dizendo:

--- O pomar de Dona Benta está tão velho que qualquer dia se Poe a caducar. As jaqueiras começam a dar mangas e as mangueiras a dar laranjas.

Mas Dona Benta não faz caso. Não admite que se corte uma só árvore – nem o pobre pé de fruta-de-conde encarangado.

Dona Benta diz que cada uma delas lembra qualquer coisa da sua meninice ou mocidade.

--- Este pé de laranja-baiana – costuma dizer – foi primeiro que tivemos aqui, e dele saíram os enxertos dos outros. Naquele tempo, laranja-baiana era uma grande novidade. A muda foi presente do defunto Zé das Lombrigas, um português muito trabalhador que morava numa chácara perto da vila.

Impossível haver no mundo lugar mais sossegado e fresco, e mais cheio de passarinhos, abelhas e borboletas.

Como Dona Benta não admite por ali nenhum menino de estilingue, a passarinhada se sente à vontade e faz seus ninhos como se estivessem na Ilha da Segurança. O próprio bodoque de Pedrinho não funciona no pomar.

E que passarinhos existem?

Oh, tantos!... No tempo o pomar enche-se de sabiás de peito vermelho, amigos de cantar a célebre música-dos-sabiá que os pais vão ensinando aos filhotes, sempre igualzinha, sem a menor mudança. E há os sanhaços cor de cinza clara. E as saíras azuis. E as graúnas pretíssimas. E muito canário-da-terra, muito papa-capim. Tiziu, pintassilgo, rolinha, corruíra...

Mas o rei do pomar é o joão-de-barro. Na paineira grande, bem lá no fundo, moram dois, num ninho feito de argila, em forma de forno de assar pão. É o casal mais amigo possível. Não se largam nunca. Onde está um, também está por perto o outro. E se por acaso um se afasta um pouco mais, volta e meio solta uns gritos como quem pergunta: “Onde você está” – e o outro responde: “Estou aqui”.

E, de vez em quando cantam juntos aquele terrível dueto que mais parece uma série de marteladas estridentes e alegres.

--- Que coisa interessante, vovó! – disse Pedrinho um dia, quando passava as férias no Sítio. – Repare que eles sempre cantam ou gritam juntos. Um faz uma parte e outro faz o acompanhamento, como no piano...

E é assim mesmo. São tão amigos que até para cantar “cantam a duas mãos”, como diz a boneca Emília.

Certo ano o casal resolveu construir um ninho novo em outro galho da paineira, e durante quinze dias o divertimento dos meninos foi acompanhar de longe aquele trabalho.

Os dois passarinhos traziam da beira do ribeirão um pelote de barro no bico e ficavam ali a colocar aquela massa no lugar próprio, e a bicá-la cem vezes para que ficasse bem ligadinha.

Enquanto um se ocupava naquilo, o outro voava em busca de mais barro. Nunca estavam os dois no mesmo serviço; revezavam-se.

À tardinha interrompiam o trabalho, cantavam o dueto com toda a forca e depois se acomodavam no ninho velho.

O mais curioso foi que, depois de acabado o ninho novo, eles, em vez de se mudarem, resolveram fazer um segundo ninho em cima daquele.

Quem primeiro notou isso foi o Visconde de Sabugosa, que foi, todo assanhado, contar a Dona Benta.

--- Venham ver – disse o sabuguinho. – Eles terminaram ontem a construção do ninho novo, mas não se mudaram do velho; em vez disso estão construindo um segundo ninho sobre o novo – uma espécie de segundo andar.

Dona Benta foi com os meninos e viu.

--- Por que será, vovó? – quis saber Pedrinho.

--- Não sei, meu filho, mas os dois passarinhos devem ter lá suas razões.

--- Eu sei – berrou Emília. – É para alugar!...

Todos riram.

--- Eu acho – disse Narizinho – que é para acomodar os filhotes quando chegarem ao ponto de voar.

--- Isso não – observou Dona Benta. – Porque se os pais construíssem casas para os filhos, estes não aprenderiam a arte da construção e essa arte se perderia. É fazendo que se aprende.

--- Mas então esses passarinhos raciocinam, vovó – têm inteligência...

--- Está claro que têm, meu filho, a Inteligência é uma faculdade que aparece em todos os seres, não só no homem. Até as plantas revelam inteligência. O que há é que a inteligência varia muito de grau. É pequeníssima nas galinhas e nos perus, mas já bem desenvolvida no joão-de-barro – e é um colosso num homem como Isaac Newton, aquele que descobriu a Lei da Gravitação Universal.

(MONTEIRO LOBATO. O Sítio do Pica-pau Amarelo, de “Como um joão-de-barro anima as conversas no sítio”. 4ª. Edição. São Paulo, Editora Brasiliense; 1991.)

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